MIMOSA é música, mas vai além. É antropologia e arqueologia musical que resgata a sonoridade e o movimento dos corpos negros brasileiros, seus ritmos e linguagens múltiplas. O álbum de estreia do projeto que une os artistas Mbé, Leyblack Beats e Luiz Felipe Lucas surge como fruto de um mergulho sobre as origens de seus criadores, ainda que realizado a grande distância, durante a imersão em uma residência artística na Espanha. O resultado é um disco-manifesto sobre a potência dos ritmos afro brasileiros: do terreiro ao samba, passando pelo hip hop, drum’n’ bass e pelas diversas vertentes do funk. O lançamento do álbum “Mimosa” é do selo QTV, já disponível nas principais plataformas.
É a partir da criminalização do funk que os artistas se debruçaram sobre a opressão histórica às manifestações artísticas afro-descendentes no Brasil. Retornando aos preconceitos sancionados pelo Estado – como uma lei anti-vadiagem que se traduzia, na verdade, na ilegalidade da capoeira e de outras manifestações culturais – para contar uma história de silenciamento. MIMOSA é um projeto que celebra a resistência e a criatividade da música negra.
“O samba foi tratado como sinônimo de vadiagem até o governo de Getúlio Vargas. Na época, andar com um pandeiro ou outro instrumento de percussão podia dar até 30 dias de cadeia. No MIMOSA encontramos a conexão direta com a atualidade da criminalização do funk com a história das opressões voltadas para as manifestações artísticas afro descendentes no Brasil”, os artistas analisam.
Para personificar essa pesquisa sonora, MIMOSA introduz um personagem que representa a negritude em suas diversas formas. Estampado na capa do disco, cabezadenego é brincalhão, transgressor e desafia estereótipos, criando uma nova narrativa. Criado inicialmente para manifestações de rua com sua tanga, pintura facial e camisa amarrada à cabeça, ele foi pensado para colocar uma lupa nos estereótipos que o corpo carrega, seja o da da bicha preta ou o do homem negro, relacionadas com o medo e com o desejo.
cabezadenego é uma conexão de mundos, uma espécie de Exú. Aparece, some, faz artimanhas inimagináveis, conecta, leva, traz, gira, brinca, se diverte. Não é bom e nem mau, é meio humano e meio entidade, um super-herói. Assim, conecta o ancestral e o moderno na pesquisa sonora de MIMOSA.
“Começamos nossa investigação para construção de samples, que contam essa tentativa sistêmica fracassada de acreditar que essa repressão fosse possível. Essas canções existem até hoje e fazem parte do imaginário coletivo cultural na identidade do Brasil. Trabalhamos a partir de uma cronologia que começa pela saída dos primeiros sons dos terreiros de macumba pra fora daquele ambiente até os bpms acelerados que movimentam as redes sociais de agora”, eles resumem.
As três cabeças de MIMOSA se uniram no final de 2020, quando Luiz Felipe Lucas (o cabezadenego) encontrou uma crítica no jornal El País Brasil sobre o álbum “Rocinha”, de Luan Correia, o Mbé. Após se conectarem online no auge da pandemia, Luan apresentou o projeto ao beatmaker Wesley Souza, AKA Leyblack Beats.
Suas trajetórias pregressas somaram-se em um projeto coletivo que reúne diversas vivências artísticas. Mbé traz sua formação em cinema, música e engenharia de som, com uma carreira que começou com produções para o coletivo de rap Justa Causa, passou pelo duo de noise O Só e culminou no álbum solo “Rocinha”, onde explorou a experimentação com boa recepção da crítica no Brasil e exterior.
Já Leyblack Beats começou sua carreira artística como guitarrista em shows e festivais. Em seguida, passou a produzir beats para o coletivo Justa Causa, onde conheceu Luan. Hoje, Leyblack Beats é um produtor musical versátil, que trabalha com artistas de reggaeton, R&B, rap e também produz temas comerciais. Por fim, Luiz Felipe Lucas é um artista performático brasileiro-espanhol, especializado na técnica física de Jerzy Grotowski. Em sua carreira, trabalhou com artistas renomados como Marina Abramovic e é membro fundador dos coletivos Legítima Defesa no Brasil e Tinta Negra na Espanha. Atualmente, Lucas está trabalhando na representação de sua performance “El Tiro”, que estreou em 2020 em Barcelona e foi continuada em Viena.
Foi através da Convocatória Aberta Permanente do Etopia Centro de Arte e Tecnologia, situado em Zaragoza (Espanha), que os três se dedicaram exclusivamente à concepção e realização de “Mimosa”, o disco de estreia. A ideia inicial era realizar uma mixtape sobre a cultura funk dos anos 2000 e recriar, com a visão dos três artistas, o período em que o gênero ganhou mais exposição midiática e passou por transformações tecnológicas.
“Quando nós chegamos nos laboratórios do Etopia, as novas ideias começaram a pipocar, e entendemos que não podiamos falar de funk sem falar dos ritmos negros na historia do país e de uma maneira que ainda não tinha sido explorada”, relembram.
MIMOSA se estabelece como uma celebração da história e da diversidade da música negra, oferecendo uma nova perspectiva sobre a cultura funk carioca. O trio coloca-se como um trabalho centrado na negritude, em que três homens negros se reapropriam de sua música e cultura e transformam em som o candomblé, a favela e várias formas de negritude visíveis e invisíveis.
“É um projeto sobre um movimento. Sobre movimentar. O funk é um um movimento constante, a música preta é um movimento constante, a diáspora também é um movimento constante, não tem fim, não se finda na geografia ou em fatos históricos. Então a última música não é o final do projeto. Depois dela, tem a continuação na cabeça de quem escuta, nas cabeças de quem criou”, eles resumem.