“Que tuudo… Que tuudo… Que tuudo…”. Por dias esse verso ocupou as mentes e as conversas de Graça Cunha, João Marcello Bôscoli e deste que vos escreve, jurados do Primeiro Festival de Música, realizado em agosto de 2022 em Jundiaí, cidade do estado de São Paulo. Escrita pelo cantor e compositor paranaense David Mour, Tudo o que Ainda Há Pra Sentir, a tal música de verso marcante, foi uma das vencedoras da competição. Cheguei até a desejar que ela fosse parar na voz de algum artista de pop e de MPB que admiro: atuei como um arauto de seu autor, enviando o arquivo da canção para amigos do meio musical. Quiseram os deuses das artes, no entanto, que Tudo que Ainda Há Pra Sentir debutasse em disco na voz de seu autor. As divindades, como sempre estavam certos: a composição brilha como poucas no repertório de Amuleto, disco de estreia de Mour, que chega agora às plataformas de streaming. Lançado em parceria com o selo FO/GO e Keepin’ Records. As faixas 1 e 2 foram patrocinadas pelo PROMIC ( Programa Municipal de Incentivo à Cultura ).
Nascido em Londrina, cidade de colonização inglesa e famosa pela agropecuária e pela cultura do café, David Moura – sim, depois ele tirou o “a” – tem ascendência boliviana e brasileira. O ponto de partida, a faísca que acendeu seu sonho musical se deu quando ele tinha sete anos e foi apresentado a Twist and Shout, dos Beatles, pela irmã mais velha. “A partir daquele momento sonhei em subir no palco e mostrar as minhas músicas”, diz. Ele começou os estudos de violão aos onze e três anos depois criou suas primeiras canções. A princípio, serviam como válvula de escape para frustrações pessoais e insegurança. “Mas foi aos 18 que comecei a enxergar tudo de uma outra forma e decidir de uma vez por todas que queria viver de música”, completa. David chegou ainda a ter uma banda, a Mour (daí o nome artístico), que lançou um disco em 2017. Dois anos depois, em 2019, surgia o projeto David Mour.
Uma das belezas que cerca o universo da música é perceber como ele muitas vezes traduz os nossos infernos pessoais e nos passa um recado de esperança. Amuleto, o disco de estreia de David Mour, tem esse poder. Ele traz, em iguais medidas, letras que retratam desespero, amor, solidão e esperança. Muitas delas soam como uma espécie de auto-afirmação, como se Mour estivesse escutando sua alma interior. “Eu fiz de tudo para sair do chão”, diz um dos versos de Pódio, canção que grita influências de blues e de soul, com direito a um teclado Hammond – habitual entre os instrumentistas desse estilo – ao fundo. Valeu a Pena, por seu turno, tem letra inspirada no poema Incenso Fosse Música, de Paulo Leminski, inspiração para astros do rock e da MPB. Aliás, Exagerado, Pra Te Iluminar e Um Pouco de Fé também tiveram versos inspirados na obra de Leminski.
Faz pelo menos uma década que o showbiz nacional tem sido visitado por uma turma de trovadores urbanos, que usam o pop e o rock para expressar seus sentimentos. David Mour é um desses nomes, claro, mas sua musicalidade vai muito além do chamado “pop fofo”. É uma reunião de melodias bem urdidas e uma encantadora diversidade sonora. Há, por exemplo, ecos do soft pop internacional dos anos 70 (o piano presente em Juro), do blues rock do mesmo período (Exagerado e Pódio, que trazem ainda uma variação de andamento), baladas doces (Teu Jeito, Impossível – esta acrescida dos vocais delicados de Lisa Haidê) e até o pop adulto do cantor e guitarrista John Mayer – que se fez perceber em Valeu a Pena. A brasilidade se faz valer em canções como Menino Bobo, uma espécie de sambalanço que David acha que tem uma pegada dance (sim, artista e escriba têm o direito de discordar), um samba indie estilo Los Hermanos (Sexta-Feira) e a faixa-título, que tem o sabor do Clube da Esquina. Outros estilos, outros detalhes da melodia bem feita e dos vocais doces de David Mour vão se revelando ao longo da audição.
Amuleto foi produzido por Marco Aurélio Silva, do estúdio Toque Grave, de Londrina. Teve faixas gravadas na cidade natal de David, São Paulo (no Space Blues, QG do guitarrista e produtor Alexandre Fontanetti) e no próprio quarto de David Mour. É um pequeno atestado de amor ao pop e vai muito além do cancioneiro folk fofo ou das composições good vibes que têm surgido no mercado. É, ainda, um diário aberto sobre as alegrias e tristezas de um autor sensível. Pensando bem, não tinha mesmo ninguém com propriedade para fazer aquele “tuudo” choroso. Ele merecia a voz de David Mour.